Ultima atualização em 5 de Março de 2021 às 19:33
Em artigo publicado recentemente no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, o estudo destaca o perfil híbrido, mescla de tradição e inovação, da Casa Chico Mendes, em Santarém, e da Casa Verde, em Monte Alegre
Entre os anos de 2013 e 2016, a então graduanda em Antropologia pela Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) Juliana Fidelis fez uma imersão em duas casas de saúde reconhecidamente alternativas nos municípios de Santarém e Monte Alegre, no Pará. Formadas em 1990, e compostas majoritariamente por mulheres desde sua criação, as casas oferecem tratamentos de baixo custo, fundamentados em conhecimentos tradicionais locais associados a plantas e diversos recursos naturais, aliados a outras técnicas terapêuticas como massagem "reichiana", terapia floral, acupuntura, homeopatia e radiestesia.
A Casa Chico Mendes, localizada no bairro da Conquista, periferia de Santarém, é a maior e mais antiga das casas de saúde da região, sendo tratada pelas demais como um polo difusor de conhecimentos e práticas de saúde para outros grupos. A continuada interação entre esses grupos deu origem a uma rede de saúde que, atualmente, se estende a outros municípios, como Alenquer, Almeirim e Faro, por exemplo.
A origem da Casa Chico Mendes remonta ao projeto “Pela Evangelização”, desenvolvido pela Igreja Católica em Santarém, na década de 1990. Naquela época, o Sistema Único de Saúde (SUS) ainda estava em fase inicial, e não havia unidades nem profissionais de saúde suficientes para assistir a toda a população. Foi a partir daí que a Diocese de Santarém implantou o projeto, com o objetivo de valorizar conhecimentos e práticas tradicionais de cura e prevenção de doenças, além de ofertar tratamentos gratuitos ou de baixo custo à população menos assistida pelo sistema oficial. Dessa forma, em 1992, nasceu a Casa Chico Mendes, onde hoje atua o Grupo Conquista de Ervas Medicinais (GCEM).
Já em 1995, a Casa Verde foi fundada no centro da cidade de Monte Alegre, abrigando o Grupo Itauajuri Ervas, que absorveu o nome da área pastoral onde foi criado por influência de dois frades franciscanos. Bastante articulada, a casa assume funções de apoio junto a outras casas nos municípios vizinhos.
Embora cada casa de saúde tenha gestão própria, a Casa Chico Mendes tende a orientar a ação das demais, acompanhando-as de modo constante. Com efeito, por ser a mais antiga, ter a melhor infraestrutura e ficar na cidade-polo da região, ela é considerada a "casa-mãe". As demais, por seu turno, consideram-se "casas-irmãs" e colaboram umas com as outras, de acordo com a proximidade geográfica e as relações de afinidade entre seus membros.
“A Casa Chico Mendes ajudou na formação e consolidação das outras casas. Elas mantêm essa conexão até hoje, compondo uma rede de casas de saúde ditas alternativas. A rede faz alusão à forma de organização dessas casas de saúde comandadas pelos grupos GCEM e Itauajuri Ervas. Essas casas se conectam, realizam atividades em conjunto, encontros de repasse de saberes, de troca de experiências, trabalham muito na base de compartilhamento de informações”, explica a orientadora da pesquisa, professora Luciana Carvalho.
A primeira iniciativa dos grupos à frente das casas foi elaborar uma espécie de inventário de conhecimentos tradicionais aplicados à produção de "remédios caseiros". Eles realizaram levantamentos das plantas e, eventualmente, partes de animais usadas em chás, unguentos, xaropes, garrafadas, pomadas, óleos, banhos e outros "remédios caseiros". Pesquisaram e registraram também as respectivas formas de preparo, as "receitas" dos medicamentos.
Até hoje, as duas casas abrem diariamente para prestar diferentes tipos de atendimento à população, que as reconhece como importantes espaços de saúde. “A maior importância desses locais é que eles não são vinculados a interesses comerciais. O maior objetivo é a disseminação, a troca. Esses grupos são norteados por um sistema que incita a dar, receber e retribuir: conhecimentos, mudas de plantas, receitas, remédios, contatos e trabalho”, reforça Juliana.
A "medicina caseira" praticada pelas casas adota espécies como o jucá, a sucuuba, o barbatimão e a salva-de-marajó. Os quintais são tomados por canteiros repletos das espécies vegetais plantadas na horta, e os medicamentos são preparados nas cozinhas. “Você começa o trabalho pela horta, um trabalho mais pesado, preparando o solo. Você tem que conhecer todo o processo, primeiro colocar a mão na massa para depois passar para as outras etapas do estágio, como circular livremente na casa, ter acesso à cozinha, à composição de outros produtos no laboratório”, detalha Juliana, que atuou durante anos como voluntária na casa de saúde em Santarém e visitou as casas localizadas nos outros municípios do Baixo Amazonas.
Protagonismo feminino – Tanto em Santarém quanto em Monte Alegre, é notória a primazia da atuação das mulheres desde a fundação das casas até o funcionamento nos dias atuais. “Elas estão na constituição do sistema de trabalho nas casas. Elas são a grande maioria dos voluntários que atuam nas casas. São elas que vão nas feiras, que dão os cursos de capacitação, que estão na coordenação, no acompanhamento da horta. Elas estão à frente de todos os processos, desde os administrativos até os terapêuticos”, enfatiza Juliana Fidelis.
Segundo Juliana, na casa de Santarém o protagonismo feminino vem desde os tempos de criação do bairro da Conquista. Antigamente, o local onde se situa o bairro era um lixão. Os moradores se mobilizaram politicamente para reivindicar a área e transformá-la num local de moradia. A conquista deu nome ao bairro. “Essas mulheres estavam ali tendo esse protagonismo político, envolvidas com a reivindicação do bairro e também preocupadas com relação à saúde dos filhos. Foi o trabalho do grupo da Pastoral das Mulheres dentro da Igreja Católica que criou o ambiente, que fez surgir as condições para viabilizar o projeto ‘Pela Evangelização’ e também a criação do GCEM. Muitas dessas mulheres permanecem na casa de saúde até hoje”, ressalta Juliana, atualmente doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Tradição e inovação – A pesquisa de Juliana, com artigo recentemente publicado no Boletim do Museu Emílio Goeldi. Ciências Humanas, conclui que, nos casos das casas de saúde alternativas do Baixo Amazonas, a tradição, fortemente associada aos tratamentos à base de plantas, tem sido conciliada com sucessivas inovações. Os conhecimentos que dão suporte às ações de saúde passam por um contínuo processo de construção, reelaboração e atualização. As práticas valorizam uma concepção de saúde global, agregando conhecimentos tradicionais e científicos relativos à saúde e à doença. Dessa forma, os tratamentos são definidos segundo uma lógica que valoriza a hibridez.
“A tradição é manejada nesses grupos de uma maneira muito aberta. As técnicas foram coletadas há 30 anos, mas elas são revisadas, passam por aprimoramentos. A concepção de tradição para essas pessoas está inserida numa dinâmica de interação com outros conhecimentos, e esses outros conhecimentos são bem-vindos, são manejados por esses voluntários de maneira a agregar no processo de itinerários de cura”, conclui Juliana.
O artigo, intitulado Por dentro da rede: a circulação de conhecimentos e práticas de saúde no baixo Amazonas, pode ser conferido na íntegra AQUI.
Renata Dantas – Comunicação/Ufopa
04/03/2021