Ultima atualização em 8 de Julho de 2019 às 17:24
Estudo inédito foi publicado em revista internacional
No meio da savana Llanos de Mojos, na porção amazônica da Bolívia, um grupo de arqueólogos conseguiu identificar resquícios de uma grande rede de drenagem, de cerca de 2 km de extensão, usada para a criação de peixes pela população indígena que habitou o local por quase 1000 anos, no período de 500 a 1.400 d.C. A pesquisa foi publicada na revista internacional Plos One, conceituada com Qualis A1, o mais alto nível conferido pela Capes. Traz resultados do esforço de um time de pesquisadores da Alemanha, França e Bolívia, liderado pela professora Gabriela Prestes Carneiro e com participação da professora Myrtle Pearl Shock, ambas do curso de Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa).
Segundo o estudo, possivelmente, a rede tinha a função de fornecer água e alimento durante o ano inteiro em uma região que passa oito meses no período da seca e que estava muito longe de fontes de água corrente. O rio mais próximo passa a 20 km e o lago, a 7 km de distância. O sistema funcionaria como um funil, drenando a água da chuva em direção aos poços e canais e possibilitando a reserva de água. A rede recém-descoberta é formada por canais com 2 km de extensão e poços artificiais de 30 metros de diâmetro, 2,5 metros de profundidade e capacidade de armazenar 1.410 metros cúbicos de água.
“Essas populações eram sedentárias e, através do conhecimento do regime de chuvas, das particularidades do território, manejaram o ambiente e elaboraram essas tecnologias que lhes permitiam viver o ano inteiro. Provavelmente os poços eram estruturas multifuncionais, serviam para consumo de água, criação de peixes e, provavelmente, também puderam abastecer cultivos de amendoim, abóbora, pimenta, algodão, mandioca, cará e milho, que foram encontrados no sítio arqueológico”.
O estudo, realizado entre 2015 e 2018, é o primeiro a trazer uma extensa lista de peixes consumidos por populações pré-coloniais, com mais de 35 espécies identificadas. Os mais de 17.000 fragmentos analisados apontam que as principais espécies consumidas eram muçum, tamoatá, piramboia, traíra e acari.
Carneiro conta que a enorme quantidade de ossos encontrados no local foi o ponto de partida da descoberta dos tanques. A pesquisadora montou as ossadas e comparou os ossos com os esqueletos de peixes amazônicos disponíveis na coleção científica do Museu Nacional de História Natural de Paris. Assim, conseguiu identificar as espécies e percebeu que se tratava de peixes que possuem adaptações fisiológicas para resistir a águas extremamente rasas e com baixo oxigênio, os chamados “peixes de lama”, como o muçum, o tamoatá e a pirambóia. A grande sacada foi relacionar essa característica das espécies encontradas às áreas escavadas, de modo que os pesquisadores foram percebendo que se tratava de canais e poços.
“Eu fui vendo o conjunto de espécies que tinha descoberto e ligando aos tanques. E aí começamos o processo de documentar melhor esses tanques, entender como que era o abastecimento de água. E percebemos que as plataformas artificiais, que eram os locais de moradia deles, estão numa área mais elevada e que os canais vão para áreas mais baixas. Isso indica que os indígenas conheciam muito bem o regime de cheia e vazante da água e a topografia para fazer esse manejo da água”, explica Carneiro.
Cultura alimentar – Segundo a professora, o estudo demonstra a riqueza alimentar das populações da época. “A dieta deles era muito mais diversa do que a gente imaginava. Eles consumiam uma diversidade enorme de plantas e animais – e que hoje nós perdemos. É importante focarmos em como nós podemos aprender com essas lições do passado e também das comunidades tradicionais e populações indígenas, de como enriquecer e variar os componentes da nossa dieta”.
Na Bolívia, as espécies de peixes encontradas, como muçum e tamoatá, são consumidas até hoje, mas pelas populações mais pobres. “Hoje nos centros urbanos da Amazônia se consome muito surubim, tucunaré, pescada, e esquecemos dessas espécies de pequeno porte que são extremamente nutritivas. Há hoje um fluxo de resgate, junto aos restaurantes, de receitas antigas amazônicas e de tentar reintegrar esses sabores à nossa dieta”, afirma a professora.
Indícios no Oeste do Pará – “Esse tipo de construção, em plataformas (ou montículos), é bastante comum em toda Amazônia. Durante muito tempo, na arqueologia amazônica, estudamos as plataformas sem olhar as outras obras de terra associadas a elas. Na Bolívia encontramos esses canais que provavelmente ajudavam a escoar a água para os tanques, mas há muitas outras obras de terra para serem estudadas na Amazônia”, destaca Carneiro.
Outros exemplos de tanques pré-coloniais na Amazônia já foram documentados, na Venezuela e arquipélago do Marajó, no Nordeste paraense e também no Oeste do Pará. Nos municípios de Santarém e Belterra, pesquisadores encontraram indícios de poços de grande porte, com tamanhos que variam de 5 metros a impressionantes 50 metros de diâmetro. São estruturas que ainda precisam ser documentadas e que podem contribuir para melhor compreender como os indígenas pré-coloniais manejavam as águas e as áreas de savana.
O artigo é de acesso livre e está disponível (em inglês) na página https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0214638.
Luena Barros - Comunicação/Ufopa
27/6/2019