Ultima atualização em 21 de Julho de 2020 às 23:51
21/06/2020- Nexo jornal - Ufopa sendo citada
25 de Junho de 2020 às 13:32
Como a morte de idosos por covid-19 abala comunidades indígenas
Camilo Rocha 21 de jun de 2020( atualizado 22/06/2020 às 15h40)
Anciãos servem como autoridades morais, conselheiros espirituais e detentores de conhecimento e memória para os povos indígenas. Mortes trazem desorientação para as populações originárias
CACIQUE PAULO PAIAKAN PARTICIPA DE PROTESTO EM BRASÍLIA. LÍDER CAIAPÓ MORREU VÍTIMA DO CORONAVÍRUS
Com uma população de cerca de 14 mil habitantes, os Munduruku vêm sendo duramente atingidos pela covid-19. Até 18 de junho, pelo menos 12 integrantes do povo tinham morrido por causa da doença. Desse total, onze eram idosos. Os Munduruku estão espalhados em territórios nos estados do Pará, Amazonas e Mato Grosso.
“Quando vamos descansar nossos corações? Meu tio Cacique Vicente Saw Munduruku, meu pai Amâncio Ikõ Munduruku, Arcelino Dace Munduruku, Francidalva Saw Munduruku, Cacique e Professor Martinho Boro Munduruku. E agora mais um. Professor Bernardo Akay Munduruku. Tem sido dias difíceis para nosso povo!”, descreveu Arlisson Ikon Biatpu Munduruku, em uma rede social.
O caso de Amâncio Ikõ Munduruku mostra como o impacto dessas perdas extrapola a dor de familiares e amigos. O líder foi um dos fundadores da Associação Indígena Pariri, em 1998, entidade que luta por direitos indígenas. Também foi Amâncio quem encorajou o cacique Juarez Saw a retomar território ancestral da etnia que depois se tornaria a Terra Indígena Sawre Muybu/Daje Kapap Eïpi.
Em comunidades indígenas, é comum que os mais velhos sirvam de conselheiros e guardiães de sabedoria e tradições em sociedades caracterizadas pela transmissão oral da história, das tradições e informações de gerações anteriores. “[A epidemia] está sendo uma das formas de destruição de nosso povo, a morte dos nossos sábios, nossos velhos, nossos conhecedores”, afirmou o Movimento Munduruku Ipereg Agu, em nota de pesar.
FOTO: DIVULGAÇÃO/ASSOCIAÇÃO PARIRI
LÍDER INDÍGENA AMÂNCIO MUNDURUKU
O novo coronavírus se alastrou por diversas populações indígenas, desde os que vivem em áreas urbanas até povos que habitam regiões remotas da Amazônia. Em muitos casos, repetindo uma dinâmica que remonta aos tempos coloniais, é o invasor branco que traz a doença, como no caso de garimpeiros que trabalham ilegalmente em terras indígenas ou de missionários cristãos que buscam converter indivíduos. Segundo dados da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), já são quase 300 indígenas mortos pela covid-19.
Além de serem o grupo de risco da doença, muitos idosos indígenas vivem em áreas distantes até da atenção médica básica. O caso de Amâncio exemplifica as dificuldades. Inicialmente levado para Itaituba, cidade mais próxima da comunidade, seu quadro se agravou. No entanto, os únicos quatro leitos de UTI da cidade estavam ocupados. Após três dias de espera, o indígena foi removido para Belém, onde acabou morrendo.
FOTO: DIVULGAÇÃO/ASSOCIAÇÃO INDÍGENA BORARI DE ALTER DO CHÃO
DONA LUSIA COM SUA BISNETA, MARIA ELISA BORARI, NA OCA DO SABER INDÍGENA
“Dentro das aldeias, o idoso que pega covid-19 não tem como se isolar, não é como o branco que fica trabalhando em casa. Ele sempre está preocupado com seu povo. Não temos estrutura dentro da aldeia, não temos hospital de campanha”, explicou ao Nexo Alessandra Korap, liderança Munduruku.
PAULO PAIAKAN
Líder Caiapó, morreu em 17 de junho no Hospital Regional de Redenção, no Pará, de covid-19. Com estimados 68 anos, já que não tinha certidão de nascimento, Paiakan foi uma das vozes indígenas de maior projeção durante a redemocratização do país e os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, em 1987 e 1988. Em 1985, liderou a expulsão de 5 mil garimpeiros. Bep’kororoti, seu nome indígena, ajudou a encabeçar a resistência contra a construção da Usina de Belo Monte, no fim dos anos 1980. O projeto só seria retomado a partir de 2010 no governo Dilma Rousseff (PT). Paiakan foi acusado de estupro por uma jovem branca em 1992. Absolvido em primeira instância, acabou pegando seis anos de prisão quando o caso foi julgado em segunda instância, em 1996.
FAUSTO SILVA MANDULÃO
Líder e professor da etnia Macuxi, de Roraima, morreu em 3 de junho, aos 58 anos. Fausto era ativista pela educação indígena. Com 41 anos de atuação, teve participação decisiva na criação do Insikiran (Instituto de Formação Superior Indígena), da UFRR (Universidade Federal de Roraima. Mandulão deixou esposa, cinco filhos e 11 netos. “Na comunidade, tudo é coletivo, e a casa do meu pai estava sempre aberta”, afirmou sua filha, a dentista Juliana Mandulão. “Meu pai sempre buscava o reconhecimento e a valorização da educação indígena. Ele queria que todo mundo tivesse acesso a uma educação de qualidade. Esse era o maior sonho dele”.
OTÁVIO DOS SANTOS
Morreu de covid-19 em 17 de abril, aos 67 anos. Uma das principais lideranças do povo Sateré-Mawé, que vive na região do Baixo Rio Amazonas, Santos estava internado em um hospital público de Mauês (AM). “Otávio foi uma liderança que sempre contribuiu com seu povo em reuniões, assembleias, seminários e encontros pedagógicos. Ele atuava reivindicando melhorias na educação, saúde, produção para o bem viver do nosso povo e de sua aldeia”, declarou Joede Sateré-Mawé, mestrando em Antropologia Social na Ufam (Universidade Federal do Amazonas).
LUSIA DOS SANTOS LOBATO
Líder indígena Borari, foi vítima fatal do novo coronavírus em Alter do Chão, Pará, em 17 de março, com 87 anos. Dona Lusia, como era conhecida, deixou sete filhos, dezessete netos, catorze bisnetos e um tataraneto. Foi uma das fundadoras do Núcleo de Mulheres Sapú Borari, ao lado da filha Neca, “cacicado feminino” que atuou por direitos humanos, reconhecimento da identidade e do território boraris. Dona Lusia encabeçou diversas iniciativas culturais no âmbito do núcleo, incluindo a retomada do ritual e dança do Sairé, em 1960, que padres católicos haviam proibido em 1943. Dona Lusia era um importante repositório de histórias e informações sobre festas comunitárias, artesanato e culinária dos Borari.
HIGINO PIMENTEL TENÓRIO
Faleceu em 18 de junho em decorrência da covid-19, aos 65 anos. Pertencente ao povo Tuyuka, Tenório era historicamente envolvido com a mobilização por direitos de povos do Alto Rio Negro. Atuando como professor indígena, era conhecido pelo trabalho de transmissão de tradições indígenas como línguas, cantos, histórias e cerimônias. Na década de 1990, trabalhou na criação dos 10 Princípios da Educação Escolar Indígena, no âmbito da Comissão dos Professores Indígenas do Amazonas e Roraima (Copiar), que orientou políticas do ministério da Educação na época.
“É como se uma biblioteca estivesse sendo queimada porque sem ela a gente não tem como aprender, o que ensinar para os filhos”, disse ao Nexo Alessandra Korap. “Todo mundo está sujeito a morte e doença, mas com a pandemia vem acontecendo tudo muito rápido e não tem havido tempo de transmitir esse conhecimento, essa orientação”.
“Se perdermos um ancião, já é difícil, imagine perder vários ao mesmo tempo. É muito dolorido, nosso coração fica paralisado”, lamentou a líder, que mora na Reserva Indígena Praia do Índio, na região de Itaituba. Ela compara essas figuras mais velhas com mães, cuja perda pode deixar um filho sem rumo.
Para Angela Kaxuyana, em entrevista ao Nexo, o conhecimento que os anciãos transmitem de modo oral não pode ser adquirido por meio de livros ou registros escritos. “Não vou conseguir fazer meu artesanato olhando um livro. Vou conseguir quando um velho sentar comigo e me explicar, me fazer pegar no material e me fazer entender o sentido daquilo”, disse.
“Para o meu povo perder uma pessoa mais velha é perder a memória da nossa existência enquanto povo. É como o Museu Nacional pegando fogo. Tem sido um desespero muito grande para nós, mais jovens. De um dia para outro, uma parte significativa do nosso conhecimento, das nossas vidas, se vai de uma forma violenta”.
Angela Kaxuyana
coordenadora e tesoureira da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), do povo Kahyana
“Estes anciãos eram fontes de conhecimento, autoridade moral, orientação política e espiritual, verdadeiros alicerces do povo Munduruku (...). Com o falecimento destes sábios, lamenta-se também a perda do conhecimento que eles carregavam sobre a história de seu povo e de toda região”, disse em nota a Sociedade de Arqueologia Brasileira.
De relatos e experiências de epidemias anteriores a conhecimento sobre tratamentos tradicionais, pajés mais velhos são também fonte de referência em tempos de crise sanitária. “Perante doenças e antes de realizar exames laboratoriais, [os Munduruku] sempre preferem se consultar com eles, pois (...) o diagnóstico dos xamãs normalmente é mais relevante. Além do conhecimento dos remédios tradicionais, suas recomendações vão para além do plano físico-material, fazendo referência também às doenças projetadas pela ‘força do sobrenatural’, conectando a atualidade com seus mitos”, escreveram Bruna Cigaran da Rocha, docente e arqueóloga da UFOPA (Universidade Federal do Oeste do Pará) e Rosamaria Santana Paes Loures, doutoranda em antropologia da UnB (Universidade de Brasília) no artigo “A expropriação territorial e a Covid-19 no alto Tapajós”, a ser publicado no site Nova Cartografia Social da Amazônia.
Nas populações indígenas em geral, a covid-19 tem tido um impacto arrasador. Até dia 16 de junho, segundo números oficiais divulgados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, haviam morrido 103 indígenas e 3.079 estavam infectados pela doença.
FOTO: BRUNO KELLY/REUTERS
HOMEM DO POVO SATERE MAWE TOMA CALDO TRADICIONAL EM FRENTE A HOSPITAL EM MANAUS ONDE INDÍGENAS ESTÃO INTERNADOS POR COVID-19
Dados compilados pela Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) mostram um quadro bem pior, com 281 mortes e 5.361 contaminações até o dia 14 de junho. Segundo a associação, o governo federal subnotifica os casos de covid-19 entre a população indígena. Um dos motivos, de acordo com a Apib, é que a Sesai contabiliza apenas casos de indígenas em terras demarcadas, na zona rural, deixando de incluir os que vivem em áreas urbanas. A contagem da Apib inclui essas pessoas.
Em nota enviada ao Nexo, em 8 de junho, a Sesai afirmou que a legislação sobre a política de saúde indígena não prevê o atendimento a indivíduos que moram fora de terras demarcadas. Cerca de 36% dos indígenas brasileiros moram em áreas urbanas.
“É muito doloroso”, disse recentemente ao Nexo Valeria Paye, do povo Kaxuyana, integrante da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira). “Há todos esses registros, essas mortes, estamos perdendo muitas lideranças importantes, e nossa memória está indo embora. Mas há ainda a negação das nossas identidades.”
Essa diferença na maneira de contabilizar também se refletiu no registro da primeira morte indígena por covid-19. De acordo com as lideranças, esse óbito aconteceu em 20 de março. Já segundo o ministério da Saúde, a primeira morte foi a de uma jovem de 20 anos da etnia Kokama, em 2 de abril.
O novo coronavírus chegou aos territórios Munduruku por intermédio de garimpeiros que trabalham irregularmente na área. Muitos dos idosos que morreram de covid-19 viviam no Alto Tapajós, que registra um movimento intenso de pessoas do garimpo.
Segundo um levantamento realizado pelo ISA (Instituto Socioambiental) e UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), com revisão da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), até 40% da população Yanomami pode ser contaminada devido às invasões de garimpeiros em seu território. Lideranças Yanomami e Ye’kwana criaram a campanha #ForaGarimpoForaCovid, que exige que o governo federal tome providências para retirar os mais de 20 mil garimpeiros do território Yanomami.
De acordo com dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), alertas de desmatamento em terras indígenas da Amazônia brasileira cresceram 59% nos quatro primeiros meses de 2020, em comparação ao mesmo período em 2019. Os dados confirmam o crescimento da atividade irregular de madeireiros e garimpeiros em Terras Indígenas.
Questões anteriores à covid-19, como o desmonte da fiscalização do Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente) e o incentivo do governo federal à atividade garimpeira, contribuem para piorar o quadro.
FOTO: BRUNO KELLY/REUTERS
PROFISSIONAIS DE SAÚDE CARREGAM O CAIXÃO DE LAUREANO FERRAZ, DE 78 ANOS, INTEGRANTE DO POVO WANANO, MORTO POR COVID-19
Outro fator de transmissão apontado por pessoas ligadas às comunidades é a necessidade que muitos indígenas têm de ir à cidade para receber o auxílio emergencial de R$ 600 pago pelo governo federal. Quando voltam da área urbana, depois de ficar horas em filas e agências bancárias cheias, muitos trazem o vírus junto. A questão já motivou inclusive a expressão “R$ 600 da morte”.
Mesmo povos isolados, como os que habitam o Vale do Javari, extremo oeste do Amazonas, correm risco de serem atingidos pela doença por intermédio de garimpeiros e madeireiros, mas também de missionários cristãos.
“Os marubo já estão se preparando para adentrar mais a floresta, estamos construindo casas mais no meio da mata para nos prevenir da covid-19 quando ela chegar perto”, afirmou o líder Paulo Kenampa Marubo, coordenador geral da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), ao El País. Em março, o cacique Marubo denunciou dois missionários americanos que tentavam conseguir uma autorização para entrar na Terra Indígena.
Em fevereiro, a Funai (Fundação Nacional do Índio) nomeou o missionário Ricardo Lopes Dias para a Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai. Caracterizada como conflito de interesses, a medida foi contestada por lideranças indígenas. Em 19 de junho, o MPF (Ministério Público Federal) entrou com um recurso para que Dias continue no cargo. O coordenador também foi acusado por indígenas e pelo MPF de omissão diante da crise de saúde e das ameaças de contaminação dos povos isolados.
A acusação de omissão da Funai se estende a outros aspectos da atuação do órgão. “Uma das coisas que achamos fundamental é a proteção dos territórios. Era justamente ajudar os indígenas que estavam estabelecendo as barreiras sanitárias e, ao mesmo tempo, estabelecer maior fiscalização para impedir invasão aos territórios. Isso não foi feito”, disse Antônio Eduardo Cerqueira Cerqueira, secretário executivo do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), ao site Brasil de Fato.