Ultima atualização em 23 de Outubro de 2020 às 12:11
Publicado na revista Mundo Amazónico, da Universidade Nacional da Colômbia, o artigo A infecção dos rios Amazonas e Tapajós: olhares em confinamento de estudantes de antropologia em Santarém (Brasil) surgiu como uma espécie de “etnografia em retalhos” na qual um grupo de estudantes de Antropologia e um professor da Universidade Federal do Oeste do Pará buscaram superar as barreiras do confinamento e entrelaçaram seus olhares sobre a pandemia da Covid-19.
A produção foi coordenada pelo professor Miguel Aparício, do Instituto de Ciências da Sociedade, a partir de uma atividade da disciplina Antropologia da Natureza, que discutiu questões ligadas a situações de pandemia, ainda no segundo semestre de 2019. Com a chegada do coronavírus, no início deste ano, os alunos se sentiram motivados a produzir sobre o assunto.
Em uma experiência de escrita colaborativa, os autores tecem reflexões a partir dos desafios vividos e observados nesse tempo da pandemia que resultaram no agravamento de conflitos na Amazônia, como aponta o texto de introdução do artigo: “Nas nossas casas à beira dos rios Amazonas e Tapajós, em Santarém, Belterra e Alter do Chão, nos propusemos tecer uma espécie de ‘etnografia em retalhos’, convivendo com o medo do contágio e o drama que alcança nossas famílias, bairros e comunidades. Vivemos em uma Amazônia em ruínas, onde “as bibliotecas estão sendo incendiadas” (Rocha e Loures, 2020), com o novo coronavírus provocando a morte dos anciões dos povos tradicionais que habitam nossa região”.
Os demais autores do artigo são: Juliana Leide Marques Bentes Barreto, Eduardo Ferreira Silva, Karina Cunha Pimenta, Dían Sousa de Oliveira, Risonilva Garcia Correa, Matheus Araújo Lobato, André Luiz Lemos Ferreira, Jéssica Miranda Matos, Paula Pires Pinheiro e Talita Cristina Araújo Baena.
A seguir trechos do artigo:
“Apesar de todos os cuidados, é manifesta a vulnerabilidade à qual estamos submetidos, pois ainda hoje o município de Belterra é dependente de Santarém no acesso a hospitais, trabalho, comércio e serviços diversos. Além disso, alguns dos meus familiares não foram liberados do trabalho para o confinamento. Mensalmente nos aventuramos pela BR-163 para comprarmos alimentos nos hipermercados de atacado. A família é grande, o risco é alto. Até quando ficaremos seguros? Isso suscita outra questão: como podemos ter segurança quando o agronegócio regional não interrompeu suas atividades?”.
“O Brasil não é mais conhecido pelo samba ou pelas selvas, mas por ter se tornado um manicômio tropical, escancarando a sujeira e o sangue jogado abaixo do tapete durante mais de 500 anos de exploração. As redes sociais expressam esse colapso social que tem nos deixado estarrecidos, encurralados na atual conjuntura. Como agir diante de uma situação como a pandemia de Covid-19, quando o caos nos rodea por meio de genocídios, ecocídios, epistemicídios, feminicídios estampados nas manchetes dos jornais e nos links das redes sociais?.
[...] você está em um país do Norte desenvolvido ou no Sul subdesenvolvido: a pandemia de Covid-19 trouxe à tona as diferenças de classe e raça que estão ainda grudadas como chiclete em nossos cabelos. No mundo inteiro o isolamento social, a medida mais eficiente contra o contágio e a proliferação da Covid-19, se tornou claramente um privilégio. Basta olhar em volta e ver as pessoas em situação de rua, ou os trabalhadores informais, sem carteira assinada, que lutam diariamente pela sua existência”.
“O(s) mundo(s) dos povos indígenas, beiradeiros e quilombolas que vivem no entorno do rio Tapajós vem morrendo junto com suas histórias e memórias. Para muitos povos da região amazônica o(s) mundo(s) já vem acabando há muito tempo. Seguem resistindo e re-existindo diante de múltiplas tentativas de extermínio, seja por meio da violência física, da usurpação de suas terras ou da precariedade de condições de vida em um Estado que não garante assistência. O vírus não almeja ou vislumbra futuro, apenas reage às ações que vem de nós. Ele não planeja invadir nossos corpos e nossas casas, mas de forma não intencional acompanha quem o leva como hospedeiro. Dessa forma alcança aldeias e comunidades remotas, distantes dos centros de atendimento sanitário”.
“A ideia de que exista no interior um lugar intocado em relação às doenças da cidade soa como promessa de uma terra segura para viver. O distanciamento geográfico do centro da cidade parece conferir a todos segurança contra a pandemia, como se uma barreira de árvores quase mística protegesse a todos do perigo do contágio. Como Anna Tsing (2019) escreve, os refugiados no nosso mundo aumentam e os refúgios ficam cada vez menores. Até mesmos esses refúgios estão ameaçados diante dessa crise sanitária: na Amazônia já sabemos disso”.
“A pandemia desta segunda década do século XXI é, como argumenta Frédéric Keck (2020), um signo de desequilíbrio entre as espécies de um ecossistema: humanos, morcegos e pangolins. Entretanto, o novo coronavírus também traz a marca indicial dos intensos fluxos aéreos do capital transnacional e das dinâmicas do turismo globalizado, que conduziram o novo coronavírus a territórios onde a ausência de mecanismos de prevenção contra epidemias potencializou o projeto da extrema direita de genocídio dos pretos e indígenas. Nesta relação ecológica alterada, com milhares de pessoas mortas em todo o mundo, aqueles que sobreviveram ao novo coronavírus na Ásia e na Europa realizaram viagens transnacionais até os países onde não havia transmissão comunitária da Covid-19. O vírus chegou na Amazônia e avançou por inúmeras rotas, expandindo seus fluxos e associações”.
“Podemos sobreviver com a infecção, mas não podemos sobreviver com o fascismo. O fascismo que está surgindo no Brasil, nos Estados Unidos, na Hungria e em muitos lugares - o fascismo que está surgindo na terra agora em Estados-nação poderosos - põe em risco nosso presente e nosso futuro.
[...] Podemos viver com a infecção? A infecção faz parte do mundo biológico, a infecção mata de diferentes formas. Acho que o fortalecimento das estruturas da saúde pública é para proteger os seres humanos e, além dos humanos, para bloquear infecções sobre populações vulneráveis de animais e plantas.
[...] É possível que um dia, junto com os grãos de soja que suplantaram estas paisagens, a floresta em retalhos espalhe novas infecções no mundo, emergidas a partir de suas perturbações. Então faremos aquilo que já começamos a fazer nestes dias de confinamento: resistir para continuar tornando possível a vida na Amazônia em ruínas”.
Confira o artigo completo (aqui).
Comunicação/Ufopa
19/10/2020